sexta-feira, 20 de abril de 2018

Ler não é quase ler. *

Peter O'Sagae


Ler é um compromisso de estar junto ao texto. Ao outro. Concordando ou não em suas ideias, sua maneira particular de apresentar-se ao olho e ao coração do leitor. Ler é estar bem ao pé da letra, e investigar palavra a palavra o que há de ver atrás de uma cortina que se impõe à janela. Quase ler, contrariamente, é fingir umas tais amenidades de uma paisagem que não existe e manter-se alegre, ou mesmo grave, por acreditar que fora alcançado o que não se leu. Ler não é quase ler.

Quase ler é estar muito brevemente com os homens, as mulheres, os trabalhadores, os velhos e também as crianças e por fim os poetas. Ao exercício de quase ler nada importa, por amor ou por ódio, nada importa. Outro texto virá e, de um jeito igualmente breve, quase ler não abraçará o tronco, nem verá um ninho com irregulares ovos num galho entre as folhas daquela árvore que não existe na paisagem através da janela.

Ler não tem pressa e assim enrodilha-se por toda uma tarde no passado e no futuro, certo que o presente não o compromete de urgências banais. Ler cria o próprio tempo, o que faz muito honestamente, manhã quente ou fria antecipando a tarde ou, prolongando-a, noite de intensa preocupação com as canções que adivinha na espera daquele pássaro além. Suspeita-se algo. Quase ler apenas dorme o que julga ser o sono dos justos, mas não é.

Neste lugar sem sonhos, quase ler desperdiça a temperatura do fruto e a voluptuosidade do perfume de novas histórias. E as flores que a tudo antecipam, antecedem? As flores entre as folhas de um livro onde se desenham pássaros, com palavra e pena, que pena! estas flores quase ler esquece, agorinha mesmo deixou escapar...

Ler perturba a natureza. Destranca a paisagem desde o primeiro parágrafo, afastando o tecido leve da cortina, erguendo acaso a vidraça que possa parecer ainda transparente ante suas mãos. Ler sabe que o caminho até a árvore fora ajardinado de pontuações e pausas – pausas diversas no trabalho duro que fez a paisagem vestir-se de diferentes meses. E messes.

Ler uma vez entende assim. Ler outra vez entende de outra maneira. E questiona se algo ali modificou lentamente a paisagem que havia atrás da janela, sempre nova, à espera do pássaro. Seu canto terá um acento fechado ou agudo? Ler sabe que é preciso reler. Às vezes a paisagem parece existir impressa na cortina e a menor oscilação do vento lhe traz uma dúvida... Mas quase ler não a tem, nenhuma.

Quase ler não gosta de perder tempo. Anda mais feliz nas respostas seguras, sem toques de sutileza. Quase ler faz de conta que leu e quase acredita que lá houve certo voo, enquanto lança ao texto um peso preconcebido de certezas que não são nem suas, muitas e muitas vezes. Nenhum pássaro, nenhum texto resiste a uma leitura desdenhosa, e é esta a verdade atrás da paisagem onde os buliçosos não ouvem a própria voz.

Humildemente, ler aceita um texto naquilo que o texto parcamente possui. Ora, é preciso ser generoso com as estações para ser humilde. E confiar que a árvore não mais floresce na paisagem da janela, nem sobre o tecido fino da cortina. Porém, talvez, quem o dirá – com amor –, a árvore estampou-se no canto do pássaro.

Quase ler não tem paz, porque, conclusivamente, jamais sentiu um tremor dentro em si. Ao que parece, ler estala qualquer minúcia e a respiração altera-se. É diferente. Porque ler não se conforma, ler não se amofina. Revoluciona. Agita os cílios da alma e já as mãos afastam a cortina novamente transfigurando som em visões e estilhaços de imagem em narrativas. Ler não ri das comédias, ler compassivamente ri das tragédias. Quase ler não compreende o estranho fato e desconfia que ler tornou-se loucura, desnecessidade tamanha. Quase ler não pensa em pensar algo para si: uma casa, um sapato, um instrumento, porque essas coisas encontra e toma-as todas prontas. Ou quase.

Ler é um desperdício de tempo, assevera.
Ler é um desconhecimento só, ninguém ensina.
Ler, no entanto, replica: aprende-se.
É uma forma de respirar.



* Este texto me foi motivado pelo texto de José Luís Peixoto, chamado “Aspas”,  publicado em 6 de abril de 2018, donde retiro a cada parágrafo uma frase, em paráfrase, numa atitude de escrita feita em ecos. Uma ideia é uma pedra. Na superfície líquida de nosso tempo. Cf. http://www.joseluispeixoto.net/aspas-142525

Primeiro o texto verbal, depois a busca de uma imagem. Voltei a vários tipos de janela com paisagem de Rene Magritte, preferindo, no entanto, “O modelo vermelho” de uma série de outros quadros pintados na cidade de Bruxelas, nos anos de pré-guerra e guerra. Esta tela – Le Model Rouge (1935) – encontra-se no Centro Georges Pompidou, em Paris.

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